A relação entre as religiões de matriz africana e as tradições de Ano Novo

Matéria publicada no 30 de dezembro pelo site Nexo Jornal

 

Muitos dos costumes reproduzidos na celebração do Réveillon no Brasil vêm dali. Entenda por que essa herança é pouco reconhecida

 

Oferendas de Iemanjá – Foto: Julio/ CreativeCommons

 

Fazer oferendas para Iemanjá, vestir-se de branco, tomar banho de cheiro para atrair boas vibrações, pular sete ondas no mar e defumar a casa são algumas práticas muito disseminadas no réveillon dos brasileiros. Sua origem está ligada às religiões de matriz africana – o candomblé e a umbanda – mas essa filiação é frequentemente apagada em meio à miscelânea de costumes que compõem a passagem de ano dos brasileiros.

O antropólogo e professor da Universidade Federal do Pará, Romero Ximenes, associa essa mistura de práticas religiosas presente na celebração do Ano Novo à característica geral e cotidiana das religiões no país. “No Brasil, a maioria das pessoas frequenta mais de uma igreja. A pessoa se diz católica quando responde ao Censo, e frequenta centro espírita, a umbanda. Quanto maior é o número de divindades cultuadas, mais protegidos nos sentimos”, disse ele ao Nexo.

Ximenes faz uma ressalva para igrejas que consideram pecado esse sincretismo, como os segmentos evangélicos que combatem as religiões afro-brasileiras. Nesses casos, segundo ele, cria-se uma prática paradoxal: ainda que condenem essas religiões, adotam alguns de seus ritos, como tirar encosto e mau olhado.

Essa relação de negação e de incorporação simultânea dos rituais tradicionais das religiões de matriz africana é transmitida para a forma como celebramos a chegada do novo ano. Segundo a psicóloga, professora e pesquisadora Jaqueline Gomes de Jesus, a dualidade tem a ver com o fato de as contribuições da população negra terem sido deslegitimadas na história da formação cultural do Brasil em função do racismo.

 

“Até o começo do século 20, a prática do candomblé era proibida, era considerada crime, assim como a da capoeira e de outras atividades oriundas da cultura negra. O preconceito com as religiões de matriz africana é presente. E é interessante ver como a cultura brasileira se apropria dos elementos trazidos por elas, mas não os reconhece, os transforma e deturpa”

Jaqueline Gomes de Jesus

(psicóloga, professora e pesquisadora)

Pelo fato de a cultura afro ser constituinte da cultura brasileira, é “natural” que pessoas que não são adeptas a esses cultos acabem exercendo, mesmo assim, costumes vindos deles. Os ritos de passagem são feitos de maneira informal pela maioria das pessoas, sem necessariamente se ter consciência da prática religiosa que lhes deu origem – e isso vale também para alguns costumes de origem católica, por exemplo.

A diferença é o lugar ocupado por cada herança cultural brasileira: há uma hierarquia que favorece a descaracterização dos costumes de origem afro, segundo Gomes de Jesus.

A relação entre os brasileiros e as religiões de matriz africana ainda é “muito precária, com muito ódio, ignorância, preconceito e falta de interesse em buscar mais informações”, define Gomes de Jesus. Esse ódio e desinteresse estão intimamente ligados ao racismo, segundo ela.

“São trocas culturais que continuarão existindo”, pondera. “O grande desafio, nesse caso, é entender quando há opressão e invizibilização das religiões de matriz africana, enfrentar e questionar isso”.

Já para Ximenes, a fusão entre práticas religiosas e profanas nas tradições dessa época do ano tem a ver com a separação entre público e privado na sociedade brasileira. “No Brasil se separa a casa e a rua. A prática religiosa é vivida na família e na igreja. O réveillon é uma festa da rua, dos lugares públicos”, afirmou. É por isso, segundo ele, que há uma “homogeneização de cultos” em celebrações como o Ano Novo. “A linha de demarcação religiosa desaparece nas grandes festas”, resume.

Na virada

PULAR 7 ONDAS E SE VESTIR DE BRANCO

Tem origem nas religiões de matriz africana, como o candomblé. É um hábito que se popularizou nacionalmente nos anos 1980 e 1990, com as telenovelas, que mostravam os adeptos da religião comemorando a virada do ano na praia de Copacabana, no Rio.

FAZER OFERENDA PARA IEMANJÁ

O dia de Iemanjá é 2 de fevereiro, mas o orixá do candomblé também ganha homenagens no Ano Novo. Na África, ela era rainha das águas doces, deusa do rio Ogun. Aqui, passou a ser a rainha do mar. Por ser também a deusa do amor incondicional, da compaixão e do perdão, as pessoas lhe enviam oferendas colocadas em barcos lançados ao mar para que ela atenda aos pedidos e apelos

DEFUMAR A CASA

A defumação é um ritual de limpeza e purificação de um ambiente. Na celebração do Réveillon, sua função é deixar coisas ruins para trás e abrir caminho para o novo. Nos terreiros, as defumações são feitas com ervas específicas, como arruda ou sândalo, e em dias específicos para cada orixá.